segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Hoje é 4 de fevereiro

Hoje é 4 de fevereiro, dia mundial do cancro. Hoje é 4 de fevereiro, o Paulo faz 44 anos. Hoje é 4 de fevereiro, o Paulo está deitado numa cama de hospital da qual provavelmente não se voltará a levantar. O cancro que lhe minava o pulmão mora agora no corpo inteiro. Trepou-lhe ao cérebro, alojou-se ao longo da coluna vertebral, fez questão de não deixar espaço para mais nada.
Ontem à noite, o Paulo dormia, num sono profundo, o mais profundo que já vi. Nada nem ninguém o conseguia despertar. Dormia naquilo que parecia quase um sono tranquilo, a respiração ritmada, a cabeça pousada na almofada castanha, a boca entreaberta, mesmo assim sem ressonar. Ao lado dele, a mesinha, o tabuleiro, o prato intacto do jantar, a maçã cozida debaixo do invólucro de celofane. As garrafas de água meio-bebidas com as palhinhas lá dentro. O prato ainda cheio de fruta fresca, os balões coloridos pendurados, já moles, esvaziados. O saco da urina de fora da cama, suspenso, contendo restos turvos da vida do Paulo.
Entrou o enfermeiro no quarto, levantou-lhe a cabeceira até ao limite da impossibilidade, enfiou-lhe uma agulha no cateter, colocou a embalagem de nolotil a gotejar do seu suporte, do saco para o tubo, do tubo para a agulha, da agulha para dentro do Paulo, a gotejar. Tentou acordá-lo para que comesse algo, para que bebesse água. "Senhor Paulo... senhor Paulo, vamos...". O Paulo nem pestaneja. Dorme de boca aberta, agora quase sentado. Dorme como que para sempre, parece que dorme desde sempre. Dorme como nunca vi. Peço licença: "Talvez uma voz feminina", sugiro. "Faça favor" - o enfermeiro não acredita mas afasta-se ligeiramente para eu tentar.
Nada. O Paulo nem pestaneja. Há dois dias que não reaje, não responde. Quando abre os olhos não vê. Quando fala não se entende. O médico disse que está em negação. Eu acho que ele já partiu.
Hoje é 4 de fevereiro, dia mundial do cancro. Quando soube isto, ontem à noite, a data escavou-me um buraco no estômago. 4 de fevereiro, o Paulo faz 44 anos. Hoje o quarto do hospital vai ficar cheio dos amigos do Paulo. O Paulo dorme profundamente, dorme já noutro mundo, foi o que me pareceu. Será que o Paulo vai acordar?
"É que o senhor tem metástases no cérebro... é impossível dizer, uns regressam, outros já não". Será que o Paulo sabe, lá onde está, que hoje faz anos? Será que o Paulo sabe que dia é hoje?
Hoje é 4 de fevereiro, dia mundial do cancro. Hoje é 4 de fevereiro, o Paulo faz 44 anos e está a morrer. 4 de fevereiro é o dia. O cancro não escolhe dia para matar. Ou escolhe?