segunda-feira, 23 de junho de 2014

Aeroporto de Barcelona - uma aventura quase tecnológica

Tenho tempo. Finalmente consegui sentar-me perto (?) das portas de embarque sem ser obrigada a consumir um café e um croissant por sete ou oito euros. Aéreos, é caso para dizê-lo. Ah, sentar-me. Até porque trago comida no saco, detesto deitar comida fora e já deixei parte do nosso espólio de emergência no café do pequeno-almoço e o resto trago comigo aqui: pão, queijo e iogurtes. É verdade, no Aeroporto de Atenas apreenderam-me dois iogurtes gregos sólidos de quilo porque supostamente eram líquidos e aqui deixaram-me passar com bué de iogurtes normais porque a capacidade está em gramas. Coisas. Todas estas incongruências: poder trazer ou não determinados objectos ou substâncias na bagagem de mão; não poder transportar algumas delas para a zona de embarque mas logo a seguir poder adquirir outras iguais ou piores na Duty Free; o facto de as regras ou a sua aplicação mudarem de país para país e até mesmo de aeroporto para aeroporto (que diferença entre este de Barcelona e o de Madrid!), tudo isto somado só serve para percebermos de forma ainda mais inequívoca - como se fosse necessário! - o carácter arbitrário e gratuito da maior parte das medidas ditas de segurança. Porque - vamos lá combinar - se eu quisesse mesmo provocar estragos durante o voo por que raios haveria de o fazer utilizando uma terrina de iogurte grego, por mais que a dita seja de terracota? Para isso usava o tablet ou um livro de capa dura - trago ambos na bagagem de mão. Garanto que a pancada na cabeça dos tripulantes não resultaria mais fracota. Com a vantagem de ser um trabalho muito mais limpo. E que posso eu fazer com uma garrafa de 25 cl de líquido que não possa com algum dos objectos que trago comigo? Já se imaginaram estrafegados com o cordão azul de um tampão OB? Ah, pois é. Os que trago na mala chegariam para a tripulação inteira e ainda para um ou outro passageiro mais recalcitrante... E os pins, canetas, pinças e outras armas igualmente letais que trago aqui comigo? Se resolvesse usá-las de forma, digamos, menos ortodoxa não fariam muito mais estragos que os provocados por um ou mesmo dois iogurtes gregos? Ora digam lá: o que dói mais? levar com uma terrina de barro na carola ou ser lentamente torturado com o auxílio de pinças, canetas, lápis e até um ou outro alfinete de pin?
Ah, sentar-me. Consumir algum do peso que trago no saco e que o levou a romper-se ainda agora em plena passagem para a zona de embarque. Um americano - ou coisa que o valha- providencial salvou-me com um saco de papel mais resistente que o meu.
OK, sentar-me. De preferência longe da poluição publicitária. E olfactiva. Há perfumes que me são insuportáveis, não é não gostar do cheiro, é literalmente não os suportar, sentir-me mal, a sufocar, ter ataques de tosse, os olhos a arder, chorar copiosamente et j'en passe.
Mas aqui neste cantinho estou relativamente resguardada da confusão sem perder de vista a minha porta onde ainda se processa o embarque anterior e preparo-me para finalmente ligar-me à net. Aeroporto, free zone, certo? Errado. Quer dizer, supostamente tenho direito a 15 minutos grátis, o que me dava imenso jeito, mas constato que tenho de preencher todo um formulário com dados pessoais. O que me chateia. Não vou fazê-lo. Ou então vou dar dados fictícios. Hum, melhor não. Ainda dá merda. Ok. Vou preencher com os meus dados. Afinal, não tenho nada a esconder. Sou uma cidadã honesta que quer consultar o seu mail e actualizar o seu facebook num aeroporto internacional, não estou a prevaricar. Só quero aceder à rede. E se possível sem esta sensação de que estou a ser observada. Sim, eu sei. O meu telefone está provavelmente sob escuta, o meu fb, o meu gmail e outras contas tivesse são diariamente esquadrinhados em busca de algo que me possa incriminar, mas no dia-a-dia esqueço-me, ou melhor, a maior parte do tempo não penso nisso enquanto que aqui, neste local, neste não-lugar o peso do "policial" e do "securitário" faz-se sentir em toda a sua amplitude. No aeroporto quando vais passar o conteúdo das bagagens na maquineta do raio X, ainda que não tenhas contigo rigorosamente nada que te possa causar problemas há sempre aquele peso no ar, aquele bichinho murphyano que te sussurra ao ouvido: "vais ser apanhada, alguém te pôs uma granada E um kilo de coca no saco enquanto estavas distraída a olhar para o painel de informações e é por isso, aliás, que ele agora está tão pesado". E por falar nisso, aquele americano ou coisa que o valha...
Mas a tentação de me ligar à net é muito forte. Que importa, afinal? Não tenho nada a esconder. Vou pôr os meus próprios dados e pronto, quero lá saber. E vou lá e preencho aquela merda. Nome, email (uma conta desactivada, claro, que não quero passar os próximos anos a receber informações do Aeroporto de Barcelona), sexo, idade, país, código postal (aqui também me permito improvisar um bocadinho...), aceito as condições e... então, e agora, o que é que falta? Indique o seu sexo, diz a janelinha. Indico. (Enquanto vou pensando que aquelas duas opções suscitariam acesa discussão em certos meios) Por favor indique o seu sexo, insiste a janelinha. Bolas, já indiquei. Feminino. Qual é a dúvida? Não cliquei? Clico. (Já tinha clicado). Por favor indique o seu sexo. Porra, vão bugiar. Não me conecto mas apago tudo. Nome, idade, email desactivado e código postal da tanga. Sim, eu sei, não serve de nada mas ao menos fez-me pegar na caneta e no papel.

terça-feira, 12 de março de 2013

12 de março de 2011

Protesto da Geração à Rasca
| 12 de Março de 2011

Fonte: @[88388366982:274:Público]O mínimo que se possa dizer é que foi um dia atípico. Não porque em trabalho tivesse conhecido pessoas que me tocaram fundo e me tivesse por várias vezes emocionado até às lágrimas. Não porque tivesse começado o dia em Santarém,berço de outros dias de luz e de esperanças mil. Não porque tivesse visto o meu povo a lutar e sete rios de multidão. Não, 12 de março de 2011 foi outro dia.
Foi o dia em que chorei frente a um pedaço de patchwork. Foi o dia em que percebi que o tecido é mãe e terra e memória ancestral. Foi o dia em que a minha filha me descobriu no meio de 200 mil pessoas. Foi o dia em que abracei desconhecidos. Em que a nossa vida começou a mudar. Em que principiámos o resgate dos nossos sonhos. O dia em que soubemos que o nosso destino colectivo estava nas nossas mãos. E tudo era possível. O dia em que abrimos as comportas e tomámos consciência da dimensão do caudal. E era imenso. E éramos nós. Tudo o resto ainda está por vir. E somos.

sexta-feira, 1 de março de 2013


Photo: Um dia, tudo isto terá passado. Um dia, todo o pesadelo que temos vivido será apenas uma recordação dolorosa que tentaremos encaixar numa lógica qualquer. Os historiadores estudarão, perplexos, os tempos em que a democracia foi suspensa e o Estado deixou de ser uma pessoa de bem para se tornar num escroque. Os nossos filhos, os nossos netos ouvirão, incrédulos, as histórias verdadeiras que lhes contaremos, sobre a forma como direitos já conquistados há décadas pelos nossos avós e bisavós e consagrados nas tábuas da lei fundamental tiveram de ser novamente disputados, arrancados a ferros de algozes disfarçados de economistas. De como, em pleno século XXI, fomos obrigados a ocupar escolas e hospitais e fábricas e padarias e supermercados e campos e casas, porque nos haviam tentado — e em muitos casos conseguido — roubar a paz, o pão, a habitação, a saúde, a educação. De como tivemos de deitar muros abaixo e de construir pontes onde já só restavam fossos. De como abolimos fronteiras e demos as mãos aos que, do outro lado, apenas aspiravam a uma vida digna. De como erigimos uma terra sem amos e resgatámos os nossos sonhos. E saberão que foi por eles que o fizemos, por eles e por nós, porque ansiávamos pelo sal e pelo mel, porque nos tinham tapado o sol e secado a terra, porque já não aguentávamos ver as nossas vidas por um canudo, por mil canudos, sem os quais afirmavam nada valermos, mas que, após dura obtenção, só nos garantiam o direito a emigrar, a exilar-nos.

Um dia, tudo isto que passamos será passado, marca, cicatriz. Não conseguirão fazer-nos esquecer, mas transformaremos as nossas dores em árvores de fortes raízes. Penduraremos os recibos verdes em paredes antiquíssimas de museu e contaremos aos nossos netos que um dia, há muito, muito tempo, os que mandavam neste país quiseram condenar-nos a pagar impostos sobre dinheiros que nem sequer ganhávamos. Que quiseram deixar-nos à míngua, fazer-nos pagar por bens que eram nossos, que depois de destruírem o que produzíamos nos fizeram comprar a outros todos os víveres de que precisávamos para sobreviver. Que nos quiseram matar à espera de tratamentos nos hospitais, que tornaram o saber num luxo incomportável, que afastaram as nossas crianças das escolas, que acabaram com os caminhos de ferro e com os comboios, que limitaram as redes de transportes públicos, enfim, que tudo fizeram para que deixássemos de nos divertir, de sair à noite, de ir ao teatro e ao cinema. Que puseram aqueles de nós que tinham empregos a trabalhar por dois, por três, por quatro e que despediram os outros, de forma a que os primeiros caíssem de exaustão e os segundos de frustração, de desânimo e de isolamento.

Contar-lhes-emos como um dia fomos obrigados a abolir pela segunda vez a escravatura, pois tentaram convencer-nos que era normal trabalharmos para aquecer, para fazer currículo, tendo de provar uma vez e outra e outra o nosso mérito, as nossas capacidades, enquanto outros tudo tinham, muito embora ninguém percebesse muito bem de onde lhes vinha a fortuna. Explicaremos aos nossos netos que aos pais deles foi roubada parte da infância, porque, sorrateiramente, um bando de malfeitores mascarados de especialistas nos conseguiram durante algum tempo persuadir que termos casa e carro e telemóvel e dinheiro para acampar no verão e ir ver a neve no inverno era um luxo ao qual não nos podíamos dar, porque éramos pecadores e criminosos, embora não nos conseguíssemos lembrar o que raios poderíamos ter feito de tão grave para que os nossos filhos merecessem tal castigo. E eles espantar-se-ão e perguntarão como foi possível que nos sujeitássemos, tão pouco tempo após a sua conquista, a perder direitos tão fundamentais como o direito a trabalhar e a viver no país onde nascemos. O direito a simplesmente querermos ser felizes.

E não saberemos o que responder-lhes. Porque na verdade teremos nós próprios dificuldade em perceber como chegámos nós um dia ao ponto a que chegámos. Mas saberemos sim que um dia dissemos basta, que um dia, com toda a força e veemência da nossa razão e da nossa vontade exigimos o que é nosso. E nos erguemos, já não como rios, mas como marés, como mares, como oceanos de certeza.

Nesse dia, sairemos das nossas casas aquecidas e mostrar-lhes-emos os caminhos que desbravámos juntos: caminharemos pela República, da José Fontana à Praça de Espanha. Desfilaremos nas Avenidas que são da Liberdade e desembocaremos de novo nos Terreiros que são do Povo. Com eles, entoaremos Grândola Vila Morena, duas vezes senha, duas vezes sonho, e as lágrimas brilharão nas nossas vozes e os versos ecoarão nas nossas memórias como ecoaram um dia nas escadarias e corredores dos Passos Perdidos, sob o olhar embargado dos polícias que só desejavam poder connosco cantar. Recordaremos o 2 de Março, o 13 de Outubro, o 15 de Setembro, o 12 de Março e de novo o 1º de Maio e o 25 de Abril, uma vez e outra e outra ainda, um dia, a chorar de alegria, de alívio precoce e intranquilo, com a certeza de que todos os invernos vão dar à primavera e de que os homens que dormem acordam sempre um dia. Um dia...


www.queselixeatroika.net
#queselixeatroika #qslt2013
Um dia, tudo isto terá passado. Um dia, todo o pesadelo que temos vivido será apenas uma recordação dolorosa que tentaremos encaixar numa lógica qualquer. Os historiadores estudarão, perplexos, os tempos em que a democracia foi suspensa e o Estado deixou de ser uma pessoa de bem para se tornar num escroque. Os nossos filhos, os nossos netos ouvirão, incrédulos, as histórias verdadeiras que lhes contaremos, sobre a forma como direitos já conquistados há décadas pelos nossos avós e bisavós e consagrados nas tábuas da lei fundamental tiveram de ser novamente disputados, arrancados a ferros de algozes disfarçados de economistas. De como, em pleno século XXI, fomos obrigados a ocupar escolas e hospitais e fábricas e padarias e supermercados e campos e casas, porque nos haviam tentado — e em muitos casos conseguido — roubar a paz, o pão, a habitação, a saúde, a educação. De como tivemos de deitar muros abaixo e de construir pontes onde já só restavam fossos. De como abolimos fronteiras e demos as mãos aos que, do outro lado, apenas aspiravam a uma vida digna. De como erigimos uma terra sem amos e resgatámos os nossos sonhos. E saberão que foi por eles que o fizemos, por eles e por nós, porque ansiávamos pelo sal e pelo mel, porque nos tinham tapado o sol e secado a terra, porque já não aguentávamos ver as nossas vidas por um canudo, por mil canudos, sem os quais afirmavam nada valermos, mas que, após dura obtenção, só nos garantiam o direito a emigrar, a exilar-nos.

Um dia, tudo isto que passamos será passado, marca, cicatriz. Não conseguirão fazer-nos esquecer, mas transformaremos as nossas dores em árvores de fortes raízes. Penduraremos os recibos verdes em paredes antiquíssimas de museu e contaremos aos nossos netos que um dia, há muito, muito tempo, os que mandavam neste país quiseram condenar-nos a pagar impostos sobre dinheiros que nem sequer ganhávamos. Que quiseram deixar-nos à míngua, fazer-nos pagar por bens que eram nossos, que depois de destruírem o que produzíamos nos fizeram comprar a outros todos os víveres de que precisávamos para sobreviver. Que nos quiseram matar à espera de tratamentos nos hospitais, que tornaram o saber num luxo incomportável, que afastaram as nossas crianças das escolas, que acabaram com os caminhos de ferro e com os comboios, que limitaram as redes de transportes públicos, enfim, que tudo fizeram para que deixássemos de nos divertir, de sair à noite, de ir ao teatro e ao cinema. Que puseram aqueles de nós que tinham empregos a trabalhar por dois, por três, por quatro e que despediram os outros, de forma a que os primeiros caíssem de exaustão e os segundos de frustração, de desânimo e de isolamento.

Contar-lhes-emos como um dia fomos obrigados a abolir pela segunda vez a escravatura, pois tentaram convencer-nos que era normal trabalharmos para aquecer, para fazer currículo, tendo de provar uma vez e outra e outra o nosso mérito, as nossas capacidades, enquanto outros tudo tinham, muito embora ninguém percebesse muito bem de onde lhes vinha a fortuna. Explicaremos aos nossos netos que aos pais deles foi roubada parte da infância, porque, sorrateiramente, um bando de malfeitores mascarados de especialistas nos conseguiram durante algum tempo persuadir que termos casa e carro e telemóvel e dinheiro para acampar no verão e ir ver a neve no inverno era um luxo ao qual não nos podíamos dar, porque éramos pecadores e criminosos, embora não nos conseguíssemos lembrar o que raios poderíamos ter feito de tão grave para que os nossos filhos merecessem tal castigo. E eles espantar-se-ão e perguntarão como foi possível que nos sujeitássemos, tão pouco tempo após a sua conquista, a perder direitos tão fundamentais como o direito a trabalhar e a viver no país onde nascemos. O direito a simplesmente querermos ser felizes.

E não saberemos o que responder-lhes. Porque na verdade teremos nós próprios dificuldade em perceber como chegámos nós um dia ao ponto a que chegámos. Mas saberemos sim que um dia dissemos basta, que um dia, com toda a força e veemência da nossa razão e da nossa vontade exigimos o que é nosso. E nos erguemos, já não como rios, mas como marés, como mares, como oceanos de certeza.

Nesse dia, sairemos das nossas casas aquecidas e mostrar-lhes-emos os caminhos que desbravámos juntos: caminharemos pela República, da José Fontana à Praça de Espanha. Desfilaremos nas Avenidas que são da Liberdade e desembocaremos de novo nos Terreiros que são do Povo. Com eles, entoaremos Grândola Vila Morena, duas vezes senha, duas vezes sonho, e as lágrimas brilharão nas nossas vozes e os versos ecoarão nas nossas memórias como ecoaram um dia nas escadarias e corredores dos Passos Perdidos, sob o olhar embargado dos polícias que só desejavam poder connosco cantar. Recordaremos o 2 de Março, o 13 de Outubro, o 15 de Setembro, o 12 de Março e de novo o 1º de Maio e o 25 de Abril, uma vez e outra e outra ainda, um dia, a chorar de alegria, de alívio precoce e intranquilo, com a certeza de que todos os invernos vão dar à primavera e de que os homens que dormem acordam sempre um dia. Um dia...


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segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Hoje é 4 de fevereiro

Hoje é 4 de fevereiro, dia mundial do cancro. Hoje é 4 de fevereiro, o Paulo faz 44 anos. Hoje é 4 de fevereiro, o Paulo está deitado numa cama de hospital da qual provavelmente não se voltará a levantar. O cancro que lhe minava o pulmão mora agora no corpo inteiro. Trepou-lhe ao cérebro, alojou-se ao longo da coluna vertebral, fez questão de não deixar espaço para mais nada.
Ontem à noite, o Paulo dormia, num sono profundo, o mais profundo que já vi. Nada nem ninguém o conseguia despertar. Dormia naquilo que parecia quase um sono tranquilo, a respiração ritmada, a cabeça pousada na almofada castanha, a boca entreaberta, mesmo assim sem ressonar. Ao lado dele, a mesinha, o tabuleiro, o prato intacto do jantar, a maçã cozida debaixo do invólucro de celofane. As garrafas de água meio-bebidas com as palhinhas lá dentro. O prato ainda cheio de fruta fresca, os balões coloridos pendurados, já moles, esvaziados. O saco da urina de fora da cama, suspenso, contendo restos turvos da vida do Paulo.
Entrou o enfermeiro no quarto, levantou-lhe a cabeceira até ao limite da impossibilidade, enfiou-lhe uma agulha no cateter, colocou a embalagem de nolotil a gotejar do seu suporte, do saco para o tubo, do tubo para a agulha, da agulha para dentro do Paulo, a gotejar. Tentou acordá-lo para que comesse algo, para que bebesse água. "Senhor Paulo... senhor Paulo, vamos...". O Paulo nem pestaneja. Dorme de boca aberta, agora quase sentado. Dorme como que para sempre, parece que dorme desde sempre. Dorme como nunca vi. Peço licença: "Talvez uma voz feminina", sugiro. "Faça favor" - o enfermeiro não acredita mas afasta-se ligeiramente para eu tentar.
Nada. O Paulo nem pestaneja. Há dois dias que não reaje, não responde. Quando abre os olhos não vê. Quando fala não se entende. O médico disse que está em negação. Eu acho que ele já partiu.
Hoje é 4 de fevereiro, dia mundial do cancro. Quando soube isto, ontem à noite, a data escavou-me um buraco no estômago. 4 de fevereiro, o Paulo faz 44 anos. Hoje o quarto do hospital vai ficar cheio dos amigos do Paulo. O Paulo dorme profundamente, dorme já noutro mundo, foi o que me pareceu. Será que o Paulo vai acordar?
"É que o senhor tem metástases no cérebro... é impossível dizer, uns regressam, outros já não". Será que o Paulo sabe, lá onde está, que hoje faz anos? Será que o Paulo sabe que dia é hoje?
Hoje é 4 de fevereiro, dia mundial do cancro. Hoje é 4 de fevereiro, o Paulo faz 44 anos e está a morrer. 4 de fevereiro é o dia. O cancro não escolhe dia para matar. Ou escolhe?

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Quanto vale uma vida? (2)




Que yo no creo en brujas, pero...
Ontem recebo um sms do Paulo. Foi ao hospital por causa da queda na banheira. Tem ordens para ficar em repouso absoluto e... passaporte para Coimbra!
Acho que ele nem sabe que eu escrevi sobre ele, mas não consigo evitar aquele efeito-pensamento mágico: verbalizei a minha preocupação no ciberespaço e o universo respondeu. Será que, se insistir bastante, outros paulos conseguem romper os bloqueios que os separam dos tratamentos? Por magia ou por estardalhaço que incomoda os poderes instalados na sua insensibilidade, acho que vale a pena tentar. Cutuque-se os gajos dos cortes. Quem manda nisto ainda somos nós, juntos.

Paulo, escusado será dizer que torço por ti.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Quanto vale uma vida?

Uma e meia da manhã, já dormito no sofá com um olho aberto e outro fechado. O telefone toca, dou um salto. É o Paulo. Enquanto procuro rede para atender passam-me mil angústias pelo peito.
- Tens comprimidos para dormir? - pergunta-me, de voz ofegante. - Ando há dias nisto e esqueci-me de ir à farmácia.
Fosse outro qualquer e se calhar não achava grande piada a ser acordada por um amigo acometido de insónias. Mas o Paulo está doente, muito doente e sozinho em casa. Sacudo a sonolência em busca de alguma lucidez.
- Só tenho comprimidos de valeriana. Não é valdispert, são outros, com uma dosagem mais forte. Comigo funciona, mas a mim qualquer coisinha me bate, não sei te farão efeito...

Pelo sim pelo não, meto-me no carro com os comprimidos no bolso. Mesmo que os ditos não o façam adormecer é um pretexto como outro qualquer para dois dedos de conversa nocturna. Diz que a simples presença de alguém de quem gostamos faz mais contra a ansiedade que muitas diazepinas.

O Paulo tem a minha idade e um cancro no pulmão. Quando finalmente conseguiu, no final do verão mais difícil da sua vida, reduzir o tumor a uma dimensão operável - fruto de muitas sessões de quimio, radio, e uma grande vontade de viver - descobriu que o bicho se reproduzira no cérebro. Agora, os médicos concentram-se nestes focos e já quase não querem saber do monstro que os originou. É preciso atacá-los rapidamente, enquanto são pequenos. É urgente dar cabo deles antes que eles dêem cabo do Paulo.

O milagre que pode salvar a vida do Paulo chama-se radiocirurgia. Uma tecnologia caríssima e muito restrita. Pelo que sei, existe uma máquina no Barreiro, uma em Coimbra e outra na Fundação Champalimaud. As duas primeiras são geridas pelo SNS, a terceira é reservada a quem tenha dinheiro para pagar pela sua vida. O Paulo tem passado os dias ao telefone, a tentar arranjar uma maneira de ir à máquina milagrosa. Encontro-o exausto e envelhecido. Abre o frigorífico e agarra numa garrafa de sumo que se lhe escapa das mãos enquanto me conta que caiu na banheira e bateu com o carro. Percebo que o desmoronar das suas forças e o declínio da sua coordenação motora estão a destruir paulatinamente a fé do Paulo. Ele sabe que o tempo não está do lado dele. E entende, porque está longe de ser parvo - e, como ele próprio diz, porque ainda tem o raciocínio intacto - que os médicos e técnicos estão a fazer com o caso dele aquilo a que se poderia chamar "manobras de diversão". O Paulo tem indicação para ir a Coimbra, E tem pressa, claro. A máquina é que não. Agora está avariada, dizem-lhe. Depois, é o próprio médico que vem falar com ele ao telefone. Diz-lhe que podem "ver como está". Zanga-se: "Eu sei como estou! Estão à espera de quê? Que os tumores cresçam mais? Até deixarem de ser tratáveis? Até que morra?!"

Amanhã (hoje), diz-me, vai à Fundação Champalimaud confirmar orçamentos (a palavra embate-me no estômago, ricocheteia e quase me sai pela boca, pelo nariz...). Oito mil euros, foi o valor que lhe avançaram há umas semanas. Oito mil euros é mais ou menos o que ele tem guardado para uma emergência. Do dinheiro que recebeu de indemnização quando o despediram, há três meses. Oito mil euros é o que o Paulo vai pagar para salvar a sua própria vida. E depois? Com que dinheiro irá sobreviver?, pergunto-me.

Já passa das três quando me deito. Dou voltas e mais voltas na cama. Espero que o Paulo tenha conseguido adormecer.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

e vem-me à memória uma frase batida

A vida é um lugar muito estranho. Como diria Jim Morrison, o mais estranho que já vi. A gente vê filmes, lê livros, ouve histórias e imagina coisas, mas ao romper de cada dia há sempre uma surpresa, um twist, um golpe de teatro, algo inesperado que surge e muda tudo, mesmo quando tudo parece ir numa determinada direcção, um caminho que conhecemos de cor e cujas curvas e contracurvas aprendemos a antecipar com o próprio corpo. E até mesmo quando a surpresa não vem como surpresa, o susto, ainda que esperado, provoca um baque, um soco no peito, ele próprio um susto dentro do susto.
Quando era pequena, imaginava todo o tipo de situações e algumas delas pareciam-me totalmente impossíveis de me acontecer. Aliás, ainda hoje há coisas que suponho não serem para mim, por serem boas de mais, más de mais, insólitas de mais. Porque não as mereço, porque não estou à altura delas, porque não estão à minha altura. Porque só acontecem a pessoas normais ou, pelo contrário, porque estão reservadas para seres excepcionais. Ou porque nada fiz para que sucedessem. Ou ainda porque as sonho com demasiada intensidade. Talvez as tema e elas me fujam. Quem sabe por isso mesmo me persigam...
E um dia, de repente, como um cogumelo numa praia - ah, pois é, eu vi!!! - , eis que tudo muda de figura, a vidinha dá uma cambalhota e o nosso mundo transforma-se. Alguma coisa acontece. Alguma coisa que conhecemos dos livros, dos filmes, de ouvir dizer. O nosso nome escrito no jornal, mas não por debaixo do título. A nossa foto partilhada por pessoas que não conhecemos. E não, não é a publicação do livro que aguarda há anos na gaveta. Não é o reconhecimento por algo que tenhamos feito, pelo menos por algo de valor ou de destaque. Não. É por algo arbitrário, algo que tanto poderia ter sido como não, algo que na verdade não nos pertence, algo como ter comprado uma rifa e ter-nos calhado a nós o prémio, ou subitamente mordermos a fava de um bolo-rei do qual aceitámos uma fatia mais por delicadeza que por gostarmos realmente do dito. E partirmos o dente.
Sei que isto que digo pode parecer ingrato, mas preferia mil vezes que me conhecessem por outro motivo, por algo de verdadeiramente significante, algo de meu. Distribuir panfletos é um acto tão anónimo, tão anódino para mim... Nem sequer gosto muito de distribuir panfletos. Aliás, na verdade, não gosto de distribuir panfletos. O que ia fazer naquele dia era outra coisa. A minha ideia não era aquela. Eu não queria que olhassem para mim. Queria que olhassem para nós. Que aceitassem que existimos, embora não façamos parte dos números. Que reconhecessem o nosso direito a integrar as estatísticas. O sentido daquela acção era mostrar às pessoas que as andam a enganar. Explicar aos meus colegas/camaradas jornalistas que a cada vez que eles substituem a expressão "x inscritos nos centros de emprego" por "x pessoas sem trabalho" estão a mentir. E que isso é grave. E que não é uma questão semântica. E independentemente do que venha a suceder amanhã, é isto que importa. O resto é ruído. Porque condenada já eu fui. Há anos e anos. E fui eu que me condenei, quando optei por ser como sou. Pouco discreta. Pouco calada. Barraqueira.

E vem-me à memória uma frase batida, uma frase que subitamente toma um novo sentido, uma dimensão inteiramente inesperada:

"See you in court".