terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Quanto vale uma vida?

Uma e meia da manhã, já dormito no sofá com um olho aberto e outro fechado. O telefone toca, dou um salto. É o Paulo. Enquanto procuro rede para atender passam-me mil angústias pelo peito.
- Tens comprimidos para dormir? - pergunta-me, de voz ofegante. - Ando há dias nisto e esqueci-me de ir à farmácia.
Fosse outro qualquer e se calhar não achava grande piada a ser acordada por um amigo acometido de insónias. Mas o Paulo está doente, muito doente e sozinho em casa. Sacudo a sonolência em busca de alguma lucidez.
- Só tenho comprimidos de valeriana. Não é valdispert, são outros, com uma dosagem mais forte. Comigo funciona, mas a mim qualquer coisinha me bate, não sei te farão efeito...

Pelo sim pelo não, meto-me no carro com os comprimidos no bolso. Mesmo que os ditos não o façam adormecer é um pretexto como outro qualquer para dois dedos de conversa nocturna. Diz que a simples presença de alguém de quem gostamos faz mais contra a ansiedade que muitas diazepinas.

O Paulo tem a minha idade e um cancro no pulmão. Quando finalmente conseguiu, no final do verão mais difícil da sua vida, reduzir o tumor a uma dimensão operável - fruto de muitas sessões de quimio, radio, e uma grande vontade de viver - descobriu que o bicho se reproduzira no cérebro. Agora, os médicos concentram-se nestes focos e já quase não querem saber do monstro que os originou. É preciso atacá-los rapidamente, enquanto são pequenos. É urgente dar cabo deles antes que eles dêem cabo do Paulo.

O milagre que pode salvar a vida do Paulo chama-se radiocirurgia. Uma tecnologia caríssima e muito restrita. Pelo que sei, existe uma máquina no Barreiro, uma em Coimbra e outra na Fundação Champalimaud. As duas primeiras são geridas pelo SNS, a terceira é reservada a quem tenha dinheiro para pagar pela sua vida. O Paulo tem passado os dias ao telefone, a tentar arranjar uma maneira de ir à máquina milagrosa. Encontro-o exausto e envelhecido. Abre o frigorífico e agarra numa garrafa de sumo que se lhe escapa das mãos enquanto me conta que caiu na banheira e bateu com o carro. Percebo que o desmoronar das suas forças e o declínio da sua coordenação motora estão a destruir paulatinamente a fé do Paulo. Ele sabe que o tempo não está do lado dele. E entende, porque está longe de ser parvo - e, como ele próprio diz, porque ainda tem o raciocínio intacto - que os médicos e técnicos estão a fazer com o caso dele aquilo a que se poderia chamar "manobras de diversão". O Paulo tem indicação para ir a Coimbra, E tem pressa, claro. A máquina é que não. Agora está avariada, dizem-lhe. Depois, é o próprio médico que vem falar com ele ao telefone. Diz-lhe que podem "ver como está". Zanga-se: "Eu sei como estou! Estão à espera de quê? Que os tumores cresçam mais? Até deixarem de ser tratáveis? Até que morra?!"

Amanhã (hoje), diz-me, vai à Fundação Champalimaud confirmar orçamentos (a palavra embate-me no estômago, ricocheteia e quase me sai pela boca, pelo nariz...). Oito mil euros, foi o valor que lhe avançaram há umas semanas. Oito mil euros é mais ou menos o que ele tem guardado para uma emergência. Do dinheiro que recebeu de indemnização quando o despediram, há três meses. Oito mil euros é o que o Paulo vai pagar para salvar a sua própria vida. E depois? Com que dinheiro irá sobreviver?, pergunto-me.

Já passa das três quando me deito. Dou voltas e mais voltas na cama. Espero que o Paulo tenha conseguido adormecer.

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