Uma e meia da manhã, já dormito no sofá com um olho aberto e outro
fechado. O telefone toca, dou um salto. É o Paulo. Enquanto procuro rede
para atender passam-me mil angústias pelo peito.
- Tens comprimidos para dormir? - pergunta-me, de voz ofegante. - Ando há dias nisto e esqueci-me de ir à farmácia.
Fosse
outro qualquer e se calhar não achava grande piada a ser acordada por
um amigo acometido de insónias. Mas o Paulo está doente, muito doente e
sozinho em casa. Sacudo a sonolência em busca de alguma lucidez.
- Só
tenho comprimidos de valeriana. Não é valdispert, são outros, com uma
dosagem mais forte. Comigo funciona, mas a mim qualquer coisinha me
bate, não sei te farão efeito...
Pelo sim pelo não, meto-me no carro
com os comprimidos no bolso. Mesmo que os ditos não o façam adormecer é
um pretexto como outro qualquer para dois dedos de conversa nocturna.
Diz que a simples presença de alguém de quem gostamos faz mais contra a
ansiedade que muitas diazepinas.
O Paulo tem a minha idade e um
cancro no pulmão. Quando finalmente conseguiu, no final do verão mais
difícil da sua vida, reduzir o tumor a uma dimensão operável - fruto de
muitas sessões de quimio, radio, e uma grande vontade de viver -
descobriu que o bicho se reproduzira no cérebro. Agora, os médicos
concentram-se nestes focos e já quase não querem saber do monstro que os
originou. É preciso atacá-los rapidamente, enquanto são pequenos. É
urgente dar cabo deles antes que eles dêem cabo do Paulo.
O
milagre que pode salvar a vida do Paulo chama-se radiocirurgia. Uma
tecnologia caríssima e muito restrita. Pelo que sei, existe uma máquina
no Barreiro, uma em Coimbra e outra na Fundação Champalimaud. As duas
primeiras são geridas pelo SNS, a terceira é reservada a quem tenha
dinheiro para pagar pela sua vida. O Paulo tem passado os dias ao
telefone, a tentar arranjar uma maneira de ir à máquina milagrosa.
Encontro-o exausto e envelhecido. Abre o frigorífico e agarra numa
garrafa de sumo que se lhe escapa das mãos enquanto me conta que caiu na
banheira e bateu com o carro. Percebo que o desmoronar das suas forças e
o declínio da sua coordenação motora estão a destruir paulatinamente a
fé do Paulo. Ele sabe que o tempo não está do lado dele. E entende,
porque está longe de ser parvo - e, como ele próprio diz, porque ainda
tem o raciocínio intacto - que os médicos e técnicos estão a fazer com o
caso dele aquilo a que se poderia chamar "manobras de diversão". O
Paulo tem indicação para ir a Coimbra, E tem pressa, claro. A máquina é
que não. Agora está avariada, dizem-lhe. Depois, é o próprio médico que
vem falar com ele ao telefone. Diz-lhe que podem "ver como está".
Zanga-se: "Eu sei como estou! Estão à espera de quê? Que os tumores
cresçam mais? Até deixarem de ser tratáveis? Até que morra?!"
Amanhã
(hoje), diz-me, vai à Fundação Champalimaud confirmar orçamentos (a
palavra embate-me no estômago, ricocheteia e quase me sai pela boca,
pelo nariz...). Oito mil euros, foi o valor que lhe avançaram há umas
semanas. Oito mil euros é mais ou menos o que ele tem guardado para uma
emergência. Do dinheiro que recebeu de indemnização quando o despediram,
há três meses. Oito mil euros é o que o Paulo vai pagar para salvar a
sua própria vida. E depois? Com que dinheiro irá sobreviver?,
pergunto-me.
Já passa das três quando me deito. Dou voltas e mais voltas na cama. Espero que o Paulo tenha conseguido adormecer.
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