Criminalização do protesto - ainda a procissão vai no adro*
Seg, 30/04/2012 - 13:54 by Myriam Zaluar
Um caso verídico do ponto de vista de uma mulher qualquer
* este é o texto que publiquei no dia em que fui constituida arguida por "desobediência qualificada", crime pelo qual serei julgada daqui a três dias no Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa
Os
nomes dos protagonistas desta história verdadeira pouco importam. O
essencial é tomarmos consciência do que se passa. E pelo andar da
carruagem não faltará muito para se começarem a registar as primeiras
prisões políticas do séc. XXI nesta "Europa civilizada" (pobre Zeca, que
a esta hora estará a dar voltas na tumba...)
Primeiro, foi um elemento da Plataforma 15 de Outubro constituído arguido por alegada 'desobediência'.
Tendo sido ele a convocar para a (primeira) manifestação em dia de
Greve Geral em Portugal - e a informar as autoridades da realização da
mesma (no passado dia 24 de novembro), foi interrogado e intimidado pela
polícia e o seu acto classificado como criminoso por violar uma lei
decrépita, anterior à Constituição da República, e segundo a qual não se
pode efectuar manifestações em Portugal aos dias de semana antes das
19h00. Para os mais puristas, recorde-se que a dita lei é, no mínimo,
contraditória em relação ao artigo 45º da CRP que garante o direito de
manifestação, assim como à prática de 38 anos de democracia durante os
quais se realizaram dezenas de manifestações aos dias de semana antes
das 19h00.
Estava-se então a
poucos dias da Greve Geral de 22 de março, data ainda suficientemente
fresca nas nossas memórias para que não seja necessário recordar as
famigeradas cargas policiais sobre manifestantes e não só. A manobra
posterior do governo, que consistia em instruir os jornalistas no
sentido de doravante se colocarem apenas de um dos lados dos
acontecimentos, é tão-só uma anedota no panorama mais lato da estratégia
do poder que, pouco a pouco, se vai desenhando perante as nossas vistas
incrédulas: trata-se - as dúvidas esbatem-se a cada dia que passa - de
um caminho já calcorreado antes e os sinais do déjà-vu multiplicam-se a
tal velocidade que, mal temos tempo para reagir a um, já mais três ou
quatro se impuseram entretanto. O lugar para onde nos dirigimos tem um
nome, e para ele não vamos sós. O lugar chama-se fascismo e temos
connosco nesta caminhada os outros países do sul da Europa. Escusado
será talvez lembrar que há poucos - pouquíssimos - dias, o governo dos
nossos vizinhos espanhóis anunciava com pompa e circunstância que os
protestos "violentos" - seja lá o que isso possa querer significar -
serão reprimidos e aqueles que os convocarem através desse tenebroso
instrumento de terrorismo que são as redes sociais poderão ser punidos
com pena de prisão até dois anos.
Mais
alguns dias passaram e eis senão quando numa manhã qualquer de um dia
qualquer toca a campainha de uma qualquer casa num qualquer bairro de
Lisboa. A mulher que ali se encontra está de pijama. Há semanas que só
sai à rua para levar os filhos à escola e fazer as compras - enquanto
ainda lhe sobram uns euros que conseguiu poupar do último biscate que
fez, seis meses atrás. Volta e meia também se força a sair da letargia
para se encontrar com outras pessoas quaisquer que com ela partilham a
condição de alguém que um dia teve um futuro brilhante à sua frente e
mais tarde percebeu que, afinal, não se tratava de um futuro mas antes
de um horizonte: sempre à vista mas de todo inatingível. Encontrar os
seus pares, perceber que não está só, tentar incutir noutros a motivação
que lhe vai faltando tornou-se para ela uma questão vital. Uma forma de
sobrevivência mental como outra qualquer.
Toca
a campaínha e não lhe apetece responder. Faz de conta que não está
ninguém em casa. Até podia estar a trabalhar, como as pessoas normais.
Mas do outro lado, o visitante insiste. Ocorre então à mulher qualquer
que talvez no hall de entrada do prédio ao qual qualquer um acede sem
dificuldade - a fechadura está avariada e quem não paga o condomínio não
se pode queixar - esteja um subcontratado qualquer pronto a cortar-lhe a
água ou o gás sem apelo nem agravo. Enfia um roupão e vai à porta.
"Quem é?"
- Notificações - responde uma voz qualquer.
- Notificações? - repete, como se o eco lhe revelasse o segredo escondido atrás daquelas cinco sílabas.
- Notificações? - repete, como se o eco lhe revelasse o segredo escondido atrás daquelas cinco sílabas.
Entreabre a porta.
- Notificações do quê?
- Ah, desculpe, não disse. É da PSP, Divisão de Investigação Criminal.
- Ah, desculpe, não disse. É da PSP, Divisão de Investigação Criminal.
A mulher qualquer enquarquilha os olhos. "Então?"
- Tem aqui uma intimação para responder nesta divisão no próximo dia tantos do tal, na qualidade de denunciada.
- Denunciada? - repete a mulher qualquer, incrédula - Denunciada do quê?
- Ah isso não sei - responde o homem - Tem de assinar aqui, se faz favor.
A
mulher assina, numa página, noutra, agora considera-se notificada, de
quê não sabe, vai puxando pela cabeça tentando em vão lembrar-se do que
terá feito, de quem terá feito queixa contra ela e porquê. Terá
insultado algum taxista no trânsito? Discutido com algum vizinho? Quem?
Porquê?
Lê atentamente o papel que
tem na mão buscando sem achar uma luz que lhe indique o que terá feito
desta vez. Quando se passa 15 anos na precariedade o superego torna-se
hiperactivo e por vezes algo irracional. Tortura-nos de forma nem sempre
justa. É como diz o velho provérbio: "Bate-lhes, bate-lhes, porque
mesmo que não saibas porque é que lhes estás a bater eles sabem sempre
porque é que estão a levar". Mas ela não sabe e por mais que pense não
se consegue lembrar de nada. Na notificação há um contacto telefónico.
Liga. "O investigador fulano de tal não está, saíu à uma, agora só
amanhã..... Não, é só mesmo ele que lhe pode dizer".
A mulher qualquer tenta não pensar no assunto. É dificil. Nunca tal lhe aconteceu antes. Não está habituada. Não que seja santa.
O resto da história já é do domínio público. Contemo-la do ponto de vista da mulher qualquer. No passado dia 6 de março
a mulher qualquer dirigiu-se a um centro de emprego qualquer. Neste
caso o do Conde de Redondo, em Lisboa. À sua espera estavam três ou
quatro activistas com quem tinha urdido uma acção altamente subversiva:
inscreverem-se no dito centro com o objectivo de passarem a fazer parte
das estatísticas. Distribuir uns panfletos. Dar a conhecer um movimento
de cidadãos recém-nascido visando a organização das pessoas sem emprego.
Mas à sua espera estavam também alguns agentes da Polícia de Segurança
Pública. Que prontamente perguntaram o que estavam ali a fazer aquelas
pessoas quaisquer e quem se responsabilizava por aquela manifestação não
autorizada. Pasmada, a mulher qualquer foi identificada enquanto
tentava explicar que aquilo não era uma manifestação (como se tal não
fosse evidente), mas um acto de inscrição simbólico. "Temos ordem para
não os deixar entrar", disse um dos agentes. "Como assim, não nos deixar
entrar? - questiona a mulher - Um cidadão não pode entrar num centro de
emprego?"
Visivelmente
incomodado, o agente afasta-se e faz uma chamada. Regressa. Que afinal
os cidadãos podem entrar, mas separados. E sem panfletos. A mulher
obedece, embora contrariada. Os outros também. Distribuem os seus
panfletos e vão-se embora. No dia 26 de abril, a mulher qualquer é constituida arguida na Divisão de Investigação Criminal da PSP de Lisboa.
É-lhe imputado o crime de desobediência, por ter alegadamente violado o
Decreto-Lei n.º 406/74 ao "convocar uma manifestação sem a devida
autorização". É-lhe aplicada uma medida de coacção: Termo de Identidade e
Residência. Não se pode ausentar de casa durante mais de 5 dias sem dar
conhecimento às autoridades. O investigador encarregado do caso - que
mobiliza recursos públicos, pagos com os impostos de todos os cidadãos
quaisquer, incluíndo os dos desempregados não contemplados nas
estatísticas - faz questão de informar a mulher qualquer que tem o
direito de não prestar declarações já que o caso, à semelhança de outros
anteriores, "é para arquivar".
Acontece
que a mulher qualquer não quer que o caso seja arquivado. Porque os
casos anteriores o foram, mas não deixaram de mobilizar recursos,
energia e tempo de ambas as partes e porque a esquizofrenia punitiva só
tem crescido. Porque pessoas quaisquer estão sem emprego e sem
perspectivas de sair do buraco e todos os dias estão a ser levadas ao
desespero. Porque o desespero, por sua vez, chega a conduzir algumas
delas ao suicídio. Porque há quem queira que estas pessoas quaisquer
tenham medo de sair à rua ou de abrir a boca para dizerem que estão
fartas e que merecem uma vida digna. Porque agora, além de serem
"preguiçosas", "parasitas", "inúteis" e "desordeiras", as pessoas
quaisquer tornaram-se também "criminosas". Alvo de interrogatórios
policiais. O que faltará para serem encarceradas?
Acontece
que, como toda a gente já percebeu, a mulher qualquer sou eu mas podia
ser qualquer outra. Acontece que esta mulher qualquer há algum tempo que
se cansou de estar calada. Acontece que esta mulher cresceu a ouvir
histórias do tempo da outra senhora mas nunca julgou vir a conhecê-la
pessoalmente. Já tinha percebido que a liberdade de expressão era uma
falácia, pois quem diz o que pensa não raras vezes paga cara a audácia. A
esta mulher já custou 15 anos de precariedade. Acontece que esta mulher
tem muito pouco a perder.
Claro
que haverá sempre quem diga que esta mulher é precária porque não tem
iniciativa. Porque é desajustada. Porque não é empreendedora, proactiva.
Porque não veste a camisola. Porque tirou um curso sem saída no mercado
de trabalho. Porque não se adapta às novas realidades. E porque fala
demais mas trabalho que é bom, tá quieto...
Claro
que haverá sempre quem diga que é um exagero tremendo falar-se em
fascismo porque, afinal de contas, temos eleições livres, temos
liberdade de expressão, de reunião, de manifestação. Desde que, claro,
devidamente autorizadas. Sem dúvida. É um tremendo exagero. É que no
tempo da outra senhora um ajuntamento de três pessoas já era considerado
uma manifestação. Agora bastam duas.
* este é o texto que publiquei no dia em que fui constituida arguida por "desobediência qualificada", crime pelo qual serei julgada daqui a três dias no Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa
A democracia não nos põe a salvo de nada: Hitler ascendeu ao poder em eleições democráticas.
ResponderEliminarMas vamos estar lá contigo.
Então vamos lá!
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